Por que escrevo?
Escrevo para não morrer.

(José Saramago)

sábado, 31 de outubro de 2009

AURA


Quando se está cansado da aura lírica
Não se sente a dor dos espinhos, na hora
que a morte bate à porta no fim do mundo.
A flor e a poesia não atraem a beleza de um pássaro
no fim de uma tarde envaidecida de catarse.

Quando se está cansado da aura lírica
O dia amanhece preso na noite disfarçada
da solidão de palavras muito gastas.

Mas quando o dia anoitece o coração
fenece, borbulha e palpita
pela castidade de um minuto com vírgulas
e sílabas incompletas de espera.
Uma esperança de poesia,
ainda que rápida como uma semifusa...
ainda como um a appogiatura sem pontos e compassos
com pressa dos ritmos a palo seco.

Quando o dia da minha morte chegar
Eu quero desvelar o véu de um poema sacro
Talvez tocarei suave no corpo suado da música
e da síncope regida por arlequins sem visão.
Esmagarei o avesso do olhar ébrio e taciturno
dos homens que amei em silêncio, a saber:
a) os bêbados sem lares e pesares;
b) os transeuntes e nômades;
c) os envaidecidos de egos e desenganos;
d) os ciganos rejeitados pelas religiões;
e) os mendigos com ternura recôndita;
f) os esquecidos no banco de praça;
g) os hippies que a mim se identificam;
h) os darwinistas e ateus que rezaram atrás da porta;
i) Nietzsche que se converteu em silêncio...
j) os velhos que se tornaram crianças;
k) os poetas cuja alma não envelheceu;
l) até mesmo os amantes que nunca me despiram
e me fizeram engolir o sêmen da poesia que não escrevi.

Quando meu dia de morte chegar
Quero me redimir diante da prosa
E desvendar os olhos diante da poesia erótica...
A poesia inundou minha alma inteira.

No breve instante de respiração
Beberei o último gole de vinho afrodisíaco
Soltarei meus longos cabelos negros
Tirarei os sapatos na passarela sagrada
E Adeste Fidelis a Pavarotti dançarei.

Disfarçarei minha nudez na cortina do céu
E diante da pressa e da falta de roupão das palavras
Rabiscarei alguns poemas secos...
Gritarei na hora nona, a cor da aura procurada
Que nem Rimbaud e Drummond encontraram.

A folha branca e asséptica na porta do céu estará...
Certamente deixada a mim, por Cabral – ainda que ateu...
Porque Deus fez o homem à sua imagem
A imagem fez-se poesia na mão do arquiteto.
Eu tecerei a manhã e o dia seguinte
E beberei a absoluta poesia fora da asa.

Finalmente, quando a porta do universo se abrir,
Zombarei de todos os grandes poetas __ Drummond,
Cabral (o João), Murilo Mendes, Montale, Baudelaire,
Rimbaud, Manoel de Barros e outros tantos__
que jamais pintaram a poesia procurada:
Aquela grande poesia que enlaçarei nos olhos de Deus.
Deus é o verbo desaguando no meu último instante
O infinito deságua em mim e eu oceano.



















ALGEMAS


Enxugo o meu poema molhado
de labirintos proibidos e saudades
para consagrar a eterna renúncia.
A remissão de meus pecados castos
A virgindade das palavras defloradas
no meio da noite clara da embriaguez.

Derramo o castigo de mil anos de civilização
O vinho seco cortando a garganta dionisíaca
E as algemas da alma envoltas no cárcere...
Visto a escuridão de luz no teu sorriso oprimido,
no olhar camuflado de amarguras e desenganos.

Desmascaro a poesia que dissimula a vergonha
da nudez de meus sentimentos confessos e desnudos
A nudez do lençol sagrado e a remissão inexorável.

A morte veio, por fim, sangrar a alma no dia da aparição.
A ressurreição dos corpos no sepulcro bebeu
a minha dor dilacerada no fim da rua.
Vi o sorriso divino escondido nas rendas do véu sagrado
Desatei os laços negros dos olhos secos e cansados
Quebrei as algemas de muitas noites não dormidas
Na busca da completude de um olhar indizível...

Soltei os cabelos amarrados com a fita opaca de cetim
E meus pensamentos estiveram a vagar na ogiva da alma
Porque pensar é adoecer os olhos da poesia e do nada.